sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O país que queremos


Estamos perto de definir o caminho político que nosso país irá trilhar nos próximos quatro anos. E quando fazemos parte dos segmentos sociais considerados “minorias”, devemos ter uma responsabilidade ainda maior com relação ao nosso voto. Principalmente, porque o conceito sociológico sobre as minorias, diz respeito aos grupos sociais que tiveram direitos negligenciados ao longo da história, a partir da construção de relações pautadas pela desigualdade: mulheres, negros/as, homossexuais, dentre outros.

Quando escolhemos um/a candidato/a ou um partido político, é aconselhável ficarmos atento ao contexto em que ele/a está inserido/a. É praxe que os/as candidatos/as se atrelem aos partidos por uma convicção ideológica, pois siglas partidárias possuem distinções e antagonismos bastante significativos que caracterizam, muitas vezes, o que é ser da Direita ou da Esquerda. Assim, pautarmos nossa escolha apenas em uma opinião isolada que o/a candidato/a tenha sobre determinado assunto é arriscar uma escolha equivocada e que poderá trazer consequências, pois há um todo a ser considerado.

Nosso país foi governado durante muito tempo pela Direita. E, apesar dos deslizes cometidos pela esquerda, durante os oito anos do governo Lula, não podemos negar os avanços que tivemos em áreas relevantes e que reverberaram diretamente na nossa qualidade de vida e no acesso aos direitos sociais.

No governo/esquerda do PT foi criada a Secretaria Especial da Mulher, e a partir daí, a violência doméstica passou a ser discutida e combatida com mais rigor. Foi no governo/esquerda do PT, que por meio da criação da Secretaria da Igualdade Racial, iniciou-se a discussão sobre o acesso do/a negro/a a educação, e que pela primeira vez uma mulher e um negro puderam compor a corte do Supremo Tribunal Federal. Esse mesmo governo,através da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, pensou políticas públicas para crianças, adolescentes, idosos/as, deficientes e grupos sociais vulnerabilizados. Assim como tornou público o debate sobre os direitos civis dos homossexuais e possibilitou a milhares de brasileiros/as saírem da linha da pobreza e terem acesso à moradia e alimentação.

Este ano a eleição foi marcada pela presença de duas mulheres na disputa presidencial, e agora estamos prestes a eleger a primeira mulher presidente do Brasil. E, se por uma questão de igualdade de gênero não for suficiente para confirmarmos o nosso voto em Dilma, quiçá, pela continuidade de um projeto de governo mais justo e igualitário. No entanto, vimos assistindo a um jogo político sujo e lamentável, perpetrado por parte da imprensa tendenciosamente “direitista”, que resolveu fazer uso apelativo de um tema delicado e que requer responsabilidade ao ser abordado, pois se trata de uma das questões mais sérias envolvendo a saúde da mulher.

O tema do aborto está em voga, nos discursos eleitoreiros do PSDB, não porque o seu candidato se preocupa com as várias mulheres e meninas estupradas cotidianamente, que darão continuidade à gestação de um feto gerado por um ato violento que marcará para sempre as suas vidas. Serra e a direita não discutem o aborto preocupados com o fato de que no Brasil, uma em cada quatro mulheres já realizou tal procedimento, de forma precária e sem nenhuma assistência do Estado. O Serra não cita que o aborto é a terceira causa morte de mulheres em nosso país. Ele apenas usa o assunto para manipular e incitar o fundamentalismo religioso, que já ceifou muitas vidas ao longo da história, em nome de uma fé cega e desumana. Não debater o aborto seriamente, tratando-o como uma questão de saúde pública, não diminuirá a incidência da prática e as mulheres continuarão morrendo.

A direita faz uso de um falso e superficial discurso moralismo e ludibria milhares de brasileiros/as, tentando fazer crer que a “defesa pela vida” é tão somente evitar que uma mulher realize um aborto. Defender a vida é, também, oferecer programas sociais que dêem aos pobres condições de se alimentarem, pois a fome mata. Defender a vida é, também, oferecer às mulheres condições de romperem o ciclo violento nas relações afetivas, pois violência doméstica mata. Defender a vida é, também, oferecer aos negros e homossexuais direitos iguais e acesso a políticas afirmativas, pois a intolerância mata.

Assim, quando estivermos nas urnas, neste segundo turno, reflitamos seriamente a respeito do tipo de país que queremos. O Brasil é maior do que essa corja de burgueses sedentos pelo poder e nós, brasileiras e brasileiros, somos bem mais inteligentes do que subjuga a direita elitista, mas é preciso acreditarmos nisso e não nos deixarmos alienar, usando nosso senso crítico para escolhermos um governo que nos represente por inteiro, respeitando as diferenças e garantindo a igualdade, pois só existe democracia em um país governado para todas e todos, e não apenas para uma maioria.

Artigo publicado no Jornal Vanguarda - Caruaru - em 23/10/10
Artigo publicado no Blog - www.ondalilaspe.blogspot.com

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Queridas/os

Neste Blog estão postados alguns artigos meus, publicados em jornais e sites, assim como fotos e vídeos.

Boa leitura!

Wedja Martins

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

sábado, 16 de janeiro de 2010

domingo, 10 de janeiro de 2010

Uma resposta ao Ato Médico

O Projeto de Lei do Ato Médico, nº 025/2002, de autoria do ex-senador Geraldo Althoff (PFL/SC), que atualmente se encontra na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, para se submeter à apreciação, vem causando certo desconforto entre os profissionais que atuam na área da saúde.

Com a justificativa de que a medicina precisa estabelecer uma clara categorização legal dos procedimentos médicos, o projeto visa delimitar certas atividades que na opinião do Conselho Federal de Medicina deveriam ser realizadas apenas por médicos, desconsiderando a importância de outros profissionais que também atuam na área da saúde.

O Artigo primeiro - parágrafo único - do Projeto de Lei cita como atos privativos do profissional médico: a formulação de diagnósticos das doenças e as indicações terapêuticas. Ou seja, para uma pessoa ter acesso a um tratamento com um psicólogo, fonoaudiólogo ou nutricionista, por exemplo, deverá se submeter primeiro a uma consulta médica. Este Artigo evidencia a tentativa de centralizar, nas mãos da classe médica, uma série de procedimentos que visam o bem estar e a saúde da população, mas que não estão ligados exclusivamente à medicina.

A busca pelo controle dos diagnósticos e tratamentos preventivos, por parte da classe médica, nas entrelinhas, significa a pretensão de se instaurar uma supremacia da medicina sobre as demais áreas de atuação em saúde, como a Psicologia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Nutrição, Farmácia e outras. Para se ter uma idéia da audácia deste projeto, o texto original do Ato Médico, no seu artigo segundo, pretendia atribuir competência legislativa ao Conselho Federal de Medicina, o que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado foi contra, por considerar um ato inconstitucional, na medida em que o poder para legislar e regulamentar pertence, indiscutivelmente, ao Legislativo e ao Executivo.

A intenção de aprovar uma lei que regulamente o exercício de suas práticas profissionais, como profere o Conselho Federal de Medicina, ao defender o ato médico, é infundada e descabida, na medida em que esta regulamentação interfere nos procedimentos de outras áreas profissionais. Ao tentar organizar lacunas existentes em sua área de atuação profissional, intervindo no campo de atuação das demais áreas da saúde, a medicina age de forma insensata, principalmente, quando sabemos que estas profissões previnem e promovem a saúde tanto quanto a medicina.

É incoerente propagar que a intenção do Ato Médico é reforçar o direito da população à assistência médica digna e de qualidade, quando se tenta instaurar uma política de assistência à saúde exclusivista, corporativista e desarticulada das outras áreas que desempenham papel preponderante para a prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças.

Várias manifestações contrárias ao Ato Médico estão sendo realizadas em todo Brasil. Os conselhos representativos das categorias profissionais da área de saúde, com seus respectivos sindicatos, profissionais, professores e estudantes universitários estão unidos nesta luta. Contudo, é necessário que a população fique alerta e consciente dos malefícios que a aprovação do Ato Médico, da forma em que se encontram alguns dos seus artigos, pode trazer para a saúde no nosso país.

A noção do indivíduo como um ser fragmentado há muito foi superada, o que se busca hoje é a articulação entre as diversas áreas do conhecimento em prol de um projeto maior, que é o cuidado pelo ser humano em todas as suas dimensões. É ineficaz a tentativa de promoção de saúde que desconsidere os vários fatores implícitos na manifestação das doenças. Somos seres sociais e, conseqüentemente, suscetíveis a uma gama de situações que nos vitimizam e condicionam ao desencadeamento das enfermidades. Além do mais, nossa condição essencial e princípio da vida, a alma, jamais poderá ser dissociada do corpo. E para o sofrimento da alma, infelizmente, a medicina não conseguiu encontrar remédio, apesar dos seus vinte e cinco séculos de existência.


Artigo publicado no Jornal Folha de Pernambuco
Em 10 de novembro de 2004
Alterado em 10/01/2010

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A lógica do contraditório

O episódio envolvendo a excomunhão da equipe médica que realizou o abortamento na criança de nove anos, vítima de estupro cometido pelo padrasto, na cidade de Alagoinha, reavivou a polêmica em torno do posicionamento da Igreja Católica diante do aborto, assim como trouxe à tona algumas contradições que envolvem esta instituição religiosa secular.

Imbuído pelo espírito protetor do direito à vida, o representante maior da Arquidiocese de Olinda e Recife levantou a bandeira de oposição ao aborto, por considerar esta prática abominável aos olhos de Deus e contrária aos preceitos morais cristãos. Na sua balança condenatória, no entanto, não pesaram os estupros consecutivos sofridos pela criança, desde que a mesma tinha 6 anos de idade. Parece ter tido pouca relevância, também, o direito à vida da própria criança violentada, haja vista, ter sido desconsiderada a declaração da equipe médica sobre os riscos iminentes que ela corria ao prosseguir com a gestação de gêmeos.

Houve um tempo, porém, em que pessoas foram perseguidas, torturadas, enforcadas e queimadas vivas, nas funestas fogueiras da Inquisição. Os rituais cruéis eram realizados em praça pública, e as punições destinadas àqueles que, de alguma forma, ameaçassem as doutrinas impostas pela Igreja Católica. Contrariando a lógica hoje difundida pelo referido Arcebispo, a sua Igreja, na Idade Média, matava em nome da preservação e garantia dos preceitos morais cristãos. Estima-se que o Santo Ofício ceifou mais vidas do que o nazismo, na Segunda Guerra Mundial.

Joana d'Arc foi uma das vítimas da carnificina inquisitória. Após comandar um exército de aproximadamente 4 mil soldados e obter êxito na batalha de Orléans - na qual a França tentava se libertar do domínio Inglês - , a heroína passou a ser perseguida sob a acusação de heresia e bruxaria, ao assumir ouvir vozes que lhe orientavam. Julgada à revelia, foi queimada ainda com vida. Tempos depois, teve sua "culpa" perdoada pela Igreja, que a reconheceu por suas virtudes heróicas, provenientes de uma suposta missão divina. Assim, Joana d'Arc foi canonizada e tornou-se santa pelas mesmas mãos que, tempos atrás, sentenciaram-na com a pena de morte.

Em recente visita à África, o Papa Bento XVI criticou com veemência o uso de preservativos nas relações sexuais. As declarações do sumo pontífice podiam ter tido um peso diminuto, não fosse a África um continente assolado pela AIDS. Fala-se que um quarto da população africana esteja infectada com o vírus HIV. São registrados oito novos casos da doença por minuto e a Organização Mundial de Saúde prevê que até o ano de 2010 a Aids poderá matar mais de 50 milhões de pessoas, em todo o mundo. Diante disto, rechaçar o uso de preservativos é induzir, indiretamente, o povo africano a uma espécie de suicídio coletivo.

Aqui no Brasil, precisamos garantir o que apregoa nossa Constituição Federal, no sentido de defender a liberdade de consciência e de crença. Não esquecendo, no entanto, que nosso país é laico, e como tal, não admite o predomínio de nenhuma instituição religiosa sobre as demais. Como também, não é delegado a Igreja alguma o poder de interferir nas questões de responsabilidade do estado. Desta forma, evitamos que certos equívocos sejam cometidos em nome de Deus e asseguramos que a democracia verdadeiramente prevaleça.


Enquanto não logramos êxito na compreensão de como ocorre o envio da "procuração divina" para aqueles que legislam em nome de Deus, aqui na terra, resta-nos renovar nossas esperanças em pessoas como Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Dom Helder Câmara, Leonardo Boff, Frei Aluísio Fragoso e Ivone Gebara, que fizeram e fazem das suas práticas eclesiásticas verdadeiros exemplos de busca pela equidade social e respeito ao próximo. E que Deus nos ajude a compreender a lógica do contraditório.



Artigo publicado no Jornal Diário de Pernambuco/Opinião
Em 20 de abril de 2009

A loucura dos manicômios

Um debate bastante acirrado vem sendo travado no âmbito dos que lidam com Direitos Humanos e Saúde Mental, no Brasil e em boa parte do mundo. De um lado, administradores de manicômios e Psiquiatras conservadores defendem a continuidade do atendimento institucionalizado aos doentes acometidos por transtornos mentais; em contrapartida, profissionais das diversas áreas da saúde e grupos de distintos segmentos sociais buscam a extinção gradual dos manicômios, em detrimento a um tratamento mais digno e humanitário, realizado em instituições que não isolem o usuário do convívio familiar e comunitário.

A história dos internamentos asilares e tratamentos institucionalizados é bastante antiga. Estas práticas foram crescendo numa velocidade proporcional à vontade de alguns de excluir do meio social aqueles indivíduos que não se enquadrassem no modelo de sociedade considerada “desenvolvida”.

Durante a Idade média a lepra assolou o mundo. Além do medo generalizado e dos mitos religiosos que lhe envolvia, ela fez surgir os leprosários, grandes espaços de confinamento humano onde os doentes, quase sempre, eram abandonados à própria sorte e não recebiam o tratamento adequado para uma devida recuperação. À mediada que a lepra foi sendo controlada, os leprosários passaram a ser o destino de pobres, presidiários e loucos. Assim, além das barreiras muitas vezes intransponíveis existentes entre a loucura e a razão, os doentes mentais passaram, a partir do confinamento institucional, a conviver com obstáculos bem mais resistentes que se configuram como estigma da intolerância e da exclusão social.

No século XX, entre as décadas de 70 e 90, os manicômios lotados, com instalações físicas inadequadas, higienização precária e as condições indignas de convivência humana desencadearam o surgimento de iniciativas conhecidas como Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial. Ambas convergem para a busca da garantia dos direitos dos doentes mentais.

De acordo com o documento do Ministério da Saúde, intitulado Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental do Brasil (2005), a Reforma Psiquiátrica é um processo político e social complexo, composto por atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas Universidades, no mercado de serviço de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoal com transtornos mentais e seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública.

Ou seja, diferentemente do que vem propagando alguns, este é um movimento legítimo de articulação de vários segmentos sociais e jamais poderá ser considerado como mera manifestação de um pequeno grupo sem projeto e com idéias esquisitas e cavilosas.

A proposta da Luta Antimanicomial, a partir da extinção dos manicômios, é a implantação dos chamados Serviços Substitutos, como a expansão dos CAPS e NAPS (Centro e Núcleo de Atenção Psicossocial), dos centros de convivência, das cooperativas de trabalho, dos atendimentos noturnos, dos serviços residenciais terapêuticos e de uma série de ações em prol da humanização do tratamento psiquiátrico. Ações estas desenvolvidas em conjunto com os vários profissionais da área da saúde.

O projeto de lei nº 3.567/89, do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que chegou ao Congresso Nacional em 1989 com a proposta de regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios, só foi sancionado em 2001 e sofreu modificações significativas no que concerne à extinção do tratamento manicomial, entretanto, foi importantíssimo para a consolidação de várias mudanças neste contexto.

Espanta-nos saber, no entanto, que apesar do evidente tratamento degradante destinado aos usuários dos hospitais psiquiátricos, alguns profissionais que se dizem comprometidos com a boa prática médica resistam em admitir a ineficiência destes internamentos na busca pela reestruturação da saúde mental. A privação da dignidade nos manicômios está presente, dentre outras coisas, no uso indiscriminado do eletro choque, nas altas doses dopantes de psicofármacos e no abandono, que muitas vezes se converte em suicídios e outros tipos de mortes dos “pacientes”.

A loucura, por si só, já suprime bastante o direito à autonomia e liberdade dos indivíduos, não é justo compactuarmos neste sentido. Não podemos permitir que a “ausência de razão”, apresentada por alguns, seja pano de fundo para justificarmos nossa omissão face ao tratamento desumano a eles destinado. Caso contrário, para que serviria nossa irrefutável lucidez.


Artigo publicado:

Jornal Folha de Pernambuco
Em 15 de outubro de 2006

Site: www.inverso.org.br
Inverso - Instituto de Convivência e de Recriação do Espaço Social SCLN 408 Bloco "B" Loja 60 Brasília-DF

O Cuidado como condição humana

Diariamente estamos nos deparando com situações que nos apontam para a necessidade urgente de uma revisão acerca da maneira como as relações pessoais estão sendo estabelecidas.

As constantes mudanças nos valores éticos, as grandes guerras, as desigualdades sociais,a violência urbana e doméstica trazem subjacente a perda de certos preceitos essenciais para um convívio social mais harmonioso, além de contribuir para nos conscientizarmos sobre o processo de desumanização em que estamos envolvidos.

As Clínicas Psicológicas e os demais espaços de tratamento estão repletos de indivíduos em busca de respostas para as dificuldades e aflições causadas, quase sempre, pela falta de referências valorativas que asseverem e sustentem uma vivência dignamente humana. Enquanto as relações interpessoais definham - cedendo lugar para a violência e a individualização -, o ser humano se distancia cada vez mais daquilo que possui de melhor, algo intrínseco a sua existência, ou seja, o cuidado.

A origem da palavra cuidado vem do latim cura, escrita na forma de coera, para contextualizar as relações de amor e amizade, uma atitude de desvelo, preocupação e inquietação pelo outro.

O teólogo Leonardo Boff acredita que o cuidado é algo tão fundamental, que foi visto pelos gregos como uma divindade que acompanha o ser humano por todo o tempo de sua peregrinação terrestre. Para ele, o cuidado deve ser cultivado como precondição essencial para a vida sob qualquer uma de suas formas. Assim, deve estar direcionado ao próprio nicho ecológico, à sociedade sustentável, ao outro, aos excluídos, ao nosso corpo e à cura integral do ser humano.

Mas foi Heidegger, filósofo que buscava em suas investigações fenomenológicas as determinações essenciais do ser humano, quem melhor expôs a idéia do ser se constituindo no cuidado. Em sua obra “Ser e tempo”, Heidegger demonstra que o cuidado não é algo que possamos ou não ter em determinadas situações ou setores de nossas vidas, já que ele é constituinte da dimensão ontológica humana. Nessa visão transcendente, o ser humano não tem cuidado, é o próprio cuidado.

Nesse sentido, cabe recordar o que nos conta a mitologia: “Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo, tomou um pouco deste barro e começou a dar-lhe forma. Júpiter apareceu e Cuidado lhe pediu que soprasse espírito naquilo que ele havia moldado. Júpiter assim o fez. Quando Cuidado decidiu dar nome à criatura que acabara de criar, Júpiter exigiu que fosse imposto o seu nome. Terra apareceu e também quis conferir o seu nome à criatura, já que havia sido feita de barro, material do seu corpo. Saturno, funcionando como árbitro, tomou a seguinte decisão: Júpiter, que lhe deu o espírito, receberá de volta este espírito por ocasião da morte desta criatura. Terra, que lhe deu o corpo, receberá de volta o seu corpo quando ela morrer; e a criatura será chamada de homem, feito de húmus, terra fértil. E, como Cuidado o moldou, ficará sob seus cuidados enquanto ele viver”.

Trazendo a reflexão do Mito do Cuidado para o centro desta discussão, e abraçando a possibilidade de tê-lo como algo inerente à condição humana, talvez possamos amenizar o agravamento da crise ético-moral vigente, para nos livrarmos da incômoda sensação de vivenciar esta infame solidão coletiva, nem que tenhamos que nos misturar de novo ao barro, ter novamente o espírito soprado por Júpiter, para que assim, Cuidado volte a ser responsável pela nossa existência.

Daí a necessidade de renovar a cada instante a possibilidade de ter o cuidado como instrumento das relações pessoais, para que nossas esperanças não fiquem perdidas em meio às cinzas do cogumelo de Nagasaki. Caso contrário, muito teremos que aspirar para juntar o pó onde se perderam a ética, a moral, o altruísmo e o respeito à dignidade humana. Tenhamos pressa, pois o vento sopra forte.



Artigo publicado no Diário de Pernambuco – Opinião – A11
Em 25 de novembro de 2008
Alterado em 06 de setembro de 2010

Na contramão da Reforma Psiquiátrica

No dia 30 de setembro deste ano cerca de duas mil pessoas, entre usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, profissionais das áreas de saúde e militantes da luta antimanicomial de todo o Brasil participaram, em Brasília, da “Marcha dos Usuários pela Reforma Psiquiátrica Manicomial”. O evento foi organizado pela Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial e pelo Conselho Federal de Psicologia.

A pauta de reivindicações, dentre outras demandas, incluiu a efetiva aplicação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº. 10.216), principalmente a implantação do Programa de Volta para Casa - que tem a finalidade de reintegrar socialmente as pessoas acometidas por transtornos mentais - e a realização da 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental - decisiva para avançar na garantia dos direitos dos usuários, já que as conferências se configuram como espaços de reflexão, reformulação e construção de políticas públicas específicas a determinados segmentos sociais.

O modelo de internamento manicomial demonstrou, ao longo dos anos, práticas ineficientes e insatisfatórias na busca de uma melhor qualidade de vida dos usuários e da garantia dos seus direitos. Um bom exemplo disto é o Hospital Alberto Maia, em Camaragibe/PE, um dos maiores hospitais psiquiátricos do país, que chegou a apresentar taxa mensal de mortalidade de até quatro casos e esta semana foi finalmente descredenciado pelo SUS.

Na contramão da Reforma Psiquiátrica, no entanto, ainda há os que insistem no discurso estereotipado sobre a loucura e se equivocam na forma de lidar com suas especificidades, sobretudo aqueles que questionam os avanços da luta antimanicomial.

A intenção dos antimanicomiais é tornar possível um atendimento psiquiátrico de qualidade, realizado em espaços comunitários e abertos, onde possamos ter nossa dor e sofrimentos acolhidos e nossa autonomia respeitada. Sabemos que dificilmente um manicômio apresenta, em sua proposta de intervenção clínica, um projeto terapêutico individualizado e condizente com as necessidades de cada usuário. O que se vê é uma padronização no atendimento e a massificação do indivíduo que está em situação de internamento.

No livro Manicômios, Prisões e Conventos, o autor Erving Goffman, ao avaliar algumas instituições que privam as pessoas de liberdade - às quais ele chama de instituições totais -, comenta que a barreira que as instituições sociais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Para ele, nestes espaços, ocorreria uma espécie de mortificação da subjetividade das pessoas. Goffman acredita que a vida dos usuários, nestas instituições, é regulada e ordenada de acordo com um sistema de disciplina desenvolvida para o controle de grande número de internados involuntários, por uma pequena equipe de profissionais.

Por considerar que as pessoas acometidas por transtornos mentais não necessitem ser controladas, reguladas ou “curadas” e sim acolhidas, cuidadas e respeitadas, é que os antimanicomiais defendem uma prática de intervenção terapêutica diferente da comumente utilizada nos Hospitais Psiquiátricos. Certamente, se o modelo hospitalocêntrico estivesse condizente com as necessidades dos internos, proporcionando um atendimento digno e humanitário, não teriam surgidos movimentos em prol do fechamento destes (des) serviços.

O legado deixado pela história dos asilos psiquiátricos não é algo do qual possamos nos orgulhar, mas para os que acreditam que manicômio tem status de hotelaria, nas próximas férias façam reserva em um dos hospícios que ainda estão em funcionamento no país... E bom descanso!



Artigo publicado no Jornal Folha de Pernambuco
Em 20 de novembro de 2009